Multiculturalismo e bem-estar animal: Touradas não, Abates religiosos Kosher e Zibh, sim?
Multiculturalismo e bem-estar animal: Touradas não,
Abates religiosos Kosher e Zibh, sim?
Pedro dos Santos Frazão, Médico-Veterinário.
Existe, em Portugal, uma tendência que visceralmente abomina a tauromaquia,
mas estranhamente promove um multiculturalismo que faz crescer no nosso país um
tema atualmente em debate por toda a europa: os abates religiosos de animais
para consumo humano. As touradas fazem hoje ainda parte das expressões
culturais proibidas pela pandemia da COVID-19, mas os abates religiosos não. Se
por um lado os animais envolvidos nas touradas são transportados para os
matadouros sendo insensibilizados previamente ao abate, dentro das normas de
bem-estar animal europeias, os animais em crescente número destinados aos
abates religiosos, não o são. Estes animais, são abatidos ao abrigo de uma
derrogação dessa salvaguarda de bem-estar animal, sem insensibilização prévia.
Bem-estar animal esse, conseguido na Europa no século passado pela “Convenção
Europeia para a Proteção de Animais em Abate”.
Sabemos o que são as corridas de touros à portuguesa, onde é proibido
matar os animais a sangue frio. Mas sabemos o que são estes abates religiosos Zibh
e Kosher?
Uma rápida pesquisa mostra, de imediato, muitos resultados nacionais para “talho halal”. Chamam-se assim, estes talhos, porque a carne neles vendida obedece a rituais de abate que já estão proibidos em 7 países da europa, e que são: a de que o animal não pode ser enfraquecido mantendo a consciência no abate, a de ser obrigatório o abate manual do animal com um único corte jugular e a de ser dessangrado ou exangue até à sua morte “natural”. O abate de animais zibh assenta na prerrogativa de que para os muçulmanos os animais lícitos de serem consumidos têm de passar por este processo de abate específico, para que a sua carne venha a ser considerada halal. Este processo engloba várias condições referentes não só à forma do abate, mas também ao tratamento do animal antes e após o abate. Não se deve arrancar ou cortar totalmente a cabeça ao abater o animal, até que o animal deixe fazer qualquer tipo de movimento. Com o cumprimento destes requisitos, deve manter-se ainda o cuidado de que a carne halal não seja nunca misturada com carne haram (ilícita), pois qualquer tipo de mistura irá tornar a carne mashkuk (duvidosa), sendo fortemente recomendada a abstinência ao seu consumo.
Já o abate hebraico kosher ou kasher, que significa “bom” e “próprio”, é utilizado para designar alimentos preparados de acordo com as leis judaicas de alimentação, denominadas kashrut. Os animais são, também, degolados estando conscientes e sem insensibilização, executando-se um golpe rápido que promove o sangramento do animal até à perda de consciência e morte “natural”. A degola é feita pelo corte das artérias carótidas e das veias jugulares, sem atingir as vértebras cervicais. Apenas uma pessoa treinada, denominada shochet, estará apta a realizar este ritual.
Ao abrigo de uma excepção, estes abates religiosos sem insensibilização prévia são legais em Portugal, bem como em alguns países europeus.
Em Portugal, as normas europeias e nacionais de bem-estar animal
relativas à proteção dos animais, obrigam os matadouros a insensibilizar, previamente
ao abate, todos os animais por uma técnica anestesiante que leve à perda
definitiva de consciência e de total sensibilidade. Esta insensibilização é
feita principalmente por dois métodos: a eletronarcose e a pistola de embolo
retrátil. Ainda que existam outras possibilidades autorizadas como a concussão
e a exposição do dióxido de carbono. Esta disposição de bem-estar animal assenta
na “Convenção Europeia para a Proteção de Animais em Abate” que remonta a 1979.
Muito porque as últimas décadas do século passado assistiram ao começo de uma
maior regulação legal das questões relacionadas com o bem-estar animal,
deixando essa matéria de depender apenas do entendimento arbitrário dos agentes
intervinientes.
No entanto, mais próximo do fim desse século XX, os países europeus da
EU aprovaram uma derrogação à obrigação de insensibilizar todos os animais nos
matadouros em caso de se tratarem de abates de ritual religioso:
“2. As exigências previstas na alínea c) do n.º 1 não se aplicam aos animais
que são objecto de métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos
religiosos.”(ponto 2,
Artigo 5 da Directiva 93/119/EC do Conselho de 22 de Dezembro).
Os abates ao abrigo desta derrogação, continuaram desde 2009 até hoje,
ao abrigo do novo Regulamento (CE) n.º 1099/2009 de 24 de set., ainda em vigor,
e existem agora cada vez com mais expressão. As comunidades religiosas
muçulmanas e hebraicas promovem hoje em Portugal abates de animais sem a devida
insensibilização e sem antes usarem qualquer uma das técnica anestesiantes
dispostas na Lei, ao abrigo desta derrogação às leis de protecção e bem-estar
animal? Ao contrário de todas as estatísticas relativas à tauromaquia, estes
dados não estão publicados pela tutela competente do bem-estar animal e pelos
abates, que é o Ministério da Agricultura, mais especificamente a Direcção-Geral
de Alimentação e Veterinária (DGAV).
Será que esta
realidade se apresenta agora, em Portugal, como um dilema ético entre o bem-estar
animal e os direitos culturais ou a liberdade religiosa?
Em
Portugal, não sabemos oficialmente qual a expressão destes abates. No entanto,
a presença multicultural de consumidores deste bem alimentar é cada vez maior,
bem como é maior o número de estabelecimentos comerciais que vendem estes bens
alimentares. Suponho que os meus colegas médicos-veterinários inspectores
sanitários também mantêm um sentimento generalizado e unânime da salvaguarda do
bem-estar animal em todos os abates, e sejam favoráveis ao intrínseco
cumprimento da referida Convenção
de Proteção dos Animais em Abate. Acontece, agora, que esta realidade parece
começar a ter maior expressão nacional, o que não acontecia antes.
Não se trata de pedir uma
proibição do abate com preceito religioso ou uma perseguição de fé, mas sim de querer
fazer valer normas de bem-estar animal que previnem o sofrimento na morte.
Isto, porque mesmo que se sigam as regras usando uma lâmina muito afiada e tudo
o que mandam essas tradições religiosas, o animal vai sempre sofrer pois não
está insensibilizado.
No contraditório, as várias
comunidades culturais dizem que este assunto “está na agenda islamofóbica na
Europa. Essas pessoas passaram, também, a visar as organizações judaicas. Penso
que muçulmanos e judeus devem queixar-se, juntos, na justiça", afirmou
Mustapha Chairi, presidente do Coletivo Contra a Islamofobia na Bélgica. Também
é comumente argumentado que o verdadeiro móbil de querer reverter a
derrogação que permite estes abates não é mais que uma medida anti-emigração.
São argumentos que não procedem em toda a linha. Ou será que a tendência opositora
touradas também pode ser denominada de “lusitanofóbica”?
Por parte das empresas
detentoras dos centros de abate e desmancha, parece existir alguma
heterogeneidade de opiniões, existem empresas que não aceitam fazer estes
abates e, outras, que olham para o assunto como uma nova oportunidade de
negócio. Um negócio com a exportação na mira, de um produto com mais valor,
cerca de 20% mais caro ao consumidor, à medida que mais países vão proibindo
estes abates na europa. É, também, um processo de produção em que poderão poupar
salários e equipamentos, uma vez que a degola é feita pelo representante
religioso e não existe o passo material de insensibilização na cadeia de abate.
Além de ser uma carne que todos podem consumir, se não apresentarem objecção de
consciência ao tipo de abate. Mas como se pode uma consciência consumidora objetar
o que não se compreende? Primeiro, não se exige que a carne destes animais não insensibilizados
seja expressamente rotulada como tal e, embora tenham sido feitas propostas na
U.E. para a rotulagem obrigatória, foram descartadas. Segundo, porque aparece
rotulado apenas a designação halal ou kosher, o que para a
maioria dos consumidores não deve dizer nada, não ligando essas denominações à
ausência de tais procedimentos de bem-estar.
Portanto, se ninguém
assiste a uma tourada inadvertidamente, qualquer consumidor menos informado pode
levar para casa, sem ter a perfeita noção de tal, uns bifes, umas codornizes ou
até um peito de frango, de animais que agonizaram conscientemente até à morte, sangrando
por degolação.
E o que se passa nos países europeus?
Atualmente, já 7 países europeus não
permitem quaisquer excepções à insensibilização dos animais antes do abate por
proteção ao bem-estar animal, são eles: a Bélgica, a Dinamarca, a Eslovénia, a Islândia,
a Noruega, a Suécia, e a Suíça. O Lichtenstein também exige atordoamento
prévio, excepto para aves. A Finlândia requer uma sedação simultânea.
Já nos outros países
europeus existe, desde há alguns anos, uma grande pressão pública para não
deixar este tipo de abates proliferarem e até mesmo para proibi-los. São comuns
os manifestos e as petições, tanto por parte dos profissionais sanitários e de
saúde animal, como por parte de vários sectores da sociedade.
Por exemplo, atualmente
no Reino Unido, a British Veterinary Association (BVA) uniu-se à Royal
Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) para pedir que o governo
siga a liderança da Bélgica e proíba, também, todos os abates sem insensibilização.
Justifica este facto com os dados publicados pela Food Standards Agency
(FSA) - estes mostram que, naquele país, mais de 94 milhões de animais foram
abatidos sem atordoamento no ano de 2018. De facto, na Bélgica, desde 1 de setembro de
2019, ficou proibido o abate de animais para consumo que não recorra,
previamente, a insensibilização, para que não sintam dor. Assim, na Bélgica,
com uma população de 11 milhões bastante multiculturais, foi retirada esta
exceção ao bem-estar animal para os abates com ritos religiosos nas três
regiões administrativas.
Também a Dinamarca baniu
a carne Halal, já em 2014, por pressão da opinião pública e para tal muito contribuiu
a disseminação de imagens de vídeo captadas em matadouros desse país, que
mostravam a forma de como se procediam esses abates.
Na Holanda, a proibição está em debate no parlamento e, ao que tudo indica, outros países devem adotar o debate para a mesma medida, em breve.
Nos relatórios internacionais, Portugal aparece como permissivo a este tipo de abates. Se por um lado não há legislação nacional que retire força de lei à derrogação da directiva europeia em vigor, por outro lado a DGAV não publica os dados oficiais de abates pelo que a informação fica sempre omissa.
Mapa de restrições legais aos abates religiosos na europa.
É verdade que métodos judaicos e islâmicos de abate se desenvolveram ao longo dos séculos, em parte, também para proporcionar um método seguro de matar e que minimizava o sofrimento do animal. Mas as ciências médico-veterinárias demonstram que existem contemporaneamente métodos para este fim que são superiormente eficazes, e esses são métodos que devem ser obrigatórios no nosso país para se atingir o objectivo que esteve na génese do desenvolvimento dos preceitos religiosos desses abates: minimizar o sofrimento do animal no preciso momento do seu abate.
Já no
séc. XIX, a Rainha D. Maria II promulgou a lei de Passos Manuel que decretava a
proibição definitiva da morte a sangue frio dos touros nas arenas (1836). Hoje,
seria também de enorme importância que, no nosso país, existisse uma discussão
de como podemos conciliar os abates religiosos com uma total preservação do
bem-estar animal, assegurando que a morte nos nossos matadouros ocorra sempre,
em qualquer espécie animal, de forma tão rápida quanto indolor. Bem como
assegurar a liberdade de religião, que é um direito fundamental do ser humano,
sendo a tolerância religiosa a prova de que a nossa sociedade é democrática e
verdadeiramente livre.
Primeira publicação em: https://observador.pt/opiniao/multiculturalismo-e-bem-estar-animal-touradas-nao-abates-religiosos-kosher-e-zibh-sim/
(21 jun 2020, 00:07).
Bem como assegurar a liberdade de religião, e a liberdade do agnosticismo que são direitos fundamentais do ser humano, sendo a tolerância religiosa e a tolerância filosófica a prova de que a nossa sociedade é suficientemente democrática e quase livre.
ResponderEliminarFui mais livre no Tempo de Salazar. ...temos pena... mas o rumo estamos a segui lo. A escravidão está garantida.
ResponderEliminarFui mais livre no Tempo de Salazar. ...temos pena... mas o rumo estamos a segui lo. A escravidão está garantida.
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