Porque Pedrógão Grande voltou em formato animal num “abrigo” da Serra da Agrela.
Porque Pedrógão Grande
voltou em formato animal num “abrigo” da Serra da Agrela.
Pedro dos Santos Frazão, Médico-Veterinário.
Estamos de luto por todos os animais que morreram em Santo Tirso. Será possível, em Portugal do séc. XXI, ser verdade que dezenas de animais de um “Abrigo” morreram queimados vivos, sendo-lhes impedido o socorro pela proprietária e com a conivência das autoridades? Porque operava, ainda, este campo de concentração animal sobrelotado com centenas de criaturas enjauladas, em evidentes más condições de salubridade? Não tinha já tinha sido alvo de queixas-crime de maus-tratos, miséria e negligência? Porque não estavam os animais à guarda do Estado, como seria devido?
Tudo isto é tristemente emocionante e todos queremos respostas e responsabilizações por esta calamidade. São muito importantes estas respostas. Também é importante a revolta sentida por aqueles, como eu, que há anos estamos conscientes dos avisos veiculados sobre o panorama da rede nacional de centros de recolha oficial de animais de companhia. E, ainda, pelos sabedores das reivindicações pelas dificuldades de ação das autoridades sanitárias veterinárias, do nosso país.
Sabem, é que em Portugal, há anos que existe um enorme problema em todos os Centros de Recolha Oficiais (CRO), vulgarmente conhecidos antes por Canis e Gatis Municipais. Este problema prende-se com a sua lotação estar há muito esgotada e a sua permanente incapacidade de receber novos animais sejam eles agressivos, errantes ou abandonados. E, não duvidemos, é este conhecido problema que promove a existência de realidades como a do “Abrigo” da Serra da Agrela, onde vimos consternados, mais uma vez por cá, morrerem centenas de seres barbaramente carbonizados em vida.
Qualquer pessoa decente, tenha ou não animais de companhia, se compadece de nojo apenas com a ideia de tal barbaridade. A existência deste “Abrigo” advém, podemos estar certos, do grave problema de sobrelotação nos CROs que obriga o Estado a permitir, consentir e até outorgar protocolos com dezenas de instituições privadas como Abrigos, Cantinhos, Ligas e Associações, onde algumas vezes centenas de animais permanecem assim amontoados em condições, no mínimo, duvidosas. Esta realidade é sinalizada pelas autoridades sanitárias veterinárias municipais há anos. Mais, sabe-se que a realidade cruenta destes depósitos ilegais de animais é uma realidade que ninguém com poder político ou administrativo quer enfrentar, pois a solução implicaria um enorme investimento de meios humanos e materiais. Não podem atuar perante os autos-de-notícia simplesmente por não terem onde alojar 100, 200 ou 300 animais, com que amiúde se deparam nestes depósitos infernais.
Tudo se complicou ainda mais com a
Lei 27/2016. Uma lei o com princípio nobre e ético de não permitir a
eutanásia de animais saudáveis, que proibiu o abate de animais nos CRO como
medida de controlo populacional. Concordamos, é o ideal. Esta lei entrou em
vigor a 23 de setembro de 2018, mas muito antes os responsáveis
sempre avisaram que, concordando com o princípio e espírito da Lei, com base
nos números, o problema dos animais errantes abandonados iria tornar-se
incontrolável caso não houvesse um colossal investimento público central e
regional. Desde o Bastonário dos Médicos-Veterinários até à Associação de
Médicos-Veterinários Municipais, todos avisaram disso mesmo nas audições oficiais
e ainda publicamente, tanto nos órgãos de comunicação generalistas como nas
revistas de especialidade.
Os governos, suportados pelos mesmos partidos de sempre, também tinham os números, até públicos e de livre acesso, da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). Nomeadamente, os relatórios anuais no âmbito da mesma lei, elaborados em dois anos anteriores à entrada em vigor da proibição de eutanásia em animais, nos CROS. Em 2017 , o total nacional de animais recolhidos das ruas portuguesas foi de 40.674, sendo desses adotados apenas 39% (16.144 animais) e, lamentavelmente, eutanasiados 11.819. Já em 2018, o relatório da DGAV indicou que foram recolhidos em todo o território nacional 36.558 animais dos quais apenas 42% resultaram em adoções (15.628 animais) e, lamentavelmente, 6.425 tiveram de ser adormecidos.
Ora, se o Governo bem sabia destes números, dos alertas dados pelos técnicos na tutela da medicina-veterinária e bem-estar animal, e quis manter a legislação nobre de princípio; porque não acautelou o que fazer a todos estes animais que se sabia virem seguramente a sobrelotar os CROs, logo no primeiro ano? Para onde iriam os animais abandonados excedentários quando as capacidades lotassem?
Tentativamente, ou politicamente para
calar as vozes com opiniões técnicas que se levantavam, em 2017, foi
lançada uma tímida medida que visava dotar os CROs de meios e
instalações: foi o “Apoio Financeiro para Modernização de Centros de Recolha
Oficial”. No entanto, o apoio acabou por ser dado só
em 2018 e de apenas 1 miserável milhão de euros. Valor manifestamente
insuficiente, até ridículo, se tivermos em conta a lista de dezenas de CROs em
Portugal. No restante, o Governo da Nação, através da DGAV, empurrou as
responsabilidades, as campanhas de sensibilização dos cidadãos e as obrigações
para os municípios, tudo é competência da esfera de cada município. Como se o
problema não fosse nacional ou como se os animais abandonados e errantes não
atravessassem sempre vários municípios na busca por algum alimento ou
salvamento.
A que resultado do panorama nacional do
animal abandonado chegamos em 2020?
Todos nós, cidadãos, sabemos que foi um bom e louvável princípio deixar de abater animais de companhia saudáveis para controlar a população. Mas sem um forte investimento na área da medicina veterinária municipal, em condições de trabalho e em maiores dimensões dos CROs nacionais, chegámos hoje ao descontrolo e à proliferação cada vez mais depósitos ilegais de animais, contra os quais é difícil agir por não existir qualquer capacidade na alternativa estatal.
Muitas vezes, em muitas regiões, não é possível cumprir a recolha dos animais abandonados ou atender os pedidos de quem liga a pedir ajuda ao seu Médico-Veterinário Municipal. Ou, sequer, de quem liga para o seu CRO a dar notícia de um animal abandonado na sua rua. É que os números oficiais e o terreno demonstram que o abandono de animais é crescente e continua a ser a raiz do problema da proliferação dos depósitos de animais, de quem muitas vezes age, admito, também com o nobre objetivo de ajudar e cuidar dos animais de companhia enquanto seres sencientes.
Sejamos muito claros, neste caso particular: Os animais de companhia que morreram queimados e enjaulados em Santo Tirso, morreram porque não estavam devidamente à guarda do Estado! Os animais de companhia que morreram queimados e enjaulados em Santo Tirso, morreram porque não foram devidamente socorridos pelo Estado! Os animais de companhia que morreram queimados e enjaulados em Santo Tirso, morreram porque os agentes Estado, sabendo da existência do “Abrigo” não atuaram em conformidade com a lei de bem-estar em vigor – por não querem, não poderem ou não estarem mandatados para tal.
Com este panorama, não só estamos a dar lugar a que estas situações dramáticas e trágicas sejam possíveis, como o enquadramento legal do acesso e rápido resgate destes animais representará sempre uma autêntica embrulhada jurídica. Uma embrulhada jurídica ao capricho de uma vontade privada, como a que decorreu este fim-de-semana.
Poderemos mesmo perguntar-nos se as dezenas de vidas perdidas para as chamas este fim-de-semana trágico não terão sido uma “solução final” de um problema dramático que se arrastava, mais ou menos consentindo na desgraça que ocorria? É uma pergunta. Espero não. Mas cada perda poderia ter sido evitada! E isso, é revoltante.
Voltando à raiz do problema, a verdade é
que, com o ritmo de abandono de animais que temos no nosso país; nem os centros
de recolha que temos chegam, nem as famílias portuguesas têm capacidade de
adotar a média dos 28 mil animais recolhidos por ano. Com a atual
realidade nacional qualquer CRO está condenado à sobrelotação permanentemente.
E, estando sobrelotado, não consegue espaço para recolher novos animais. Fica inoperacional,
não vai servir aquilo para que foi construído e pago pelos nossos impostos:
recolher e salvar os animais da rua – vai-se, sobretudo, incrementar e
oportunizar a recolha desses animais excedentes pelos privados, muitas vezes em
condições muito duvidosas!
Além desta dura tangibilidade dos depósitos de animais, proliferavam já outras notícias que davam conta de mais um problema gravíssimo com ataques de matilhas de cães errantes que os municípios não conseguem recolher.
Há poucos meses, por exemplo, a Câmara
de Viana do Castelo exigia reavaliação da lei por "não ter solução para
cães vadios, quando três deles mataram 30 animais (ovelhas) no município”.
Também em Bragança, cães vadios atacaram rebanhos e galinheiros e não havia
solução para estes animais mais agressivos. Aqui mesmo, no Observador, noticiou-se
que aumentaram os ataques de cães perigosos e, claro, os especialistas
ouvidos apontaram o dedo não só aos donos mas também à sobrelotação dos canis,
que fazem aumentar as matilhas urbanas e rurais. Quando o resultado são mais de 740 ataques de cães na
via pública nos últimos três anos, não restam dúvidas que existe uma
problemática. Importante notar que são sempre animais de estatuto sanitários
desconhecido para as mais variadas zoonoses, um vasto leque de doenças
infeciosas capazes de serem transmitidas entre animais e seres humanos. A
qualquer momento poderão vir a dar-se ataques a idosos, adultos e
crianças, pois continuam a existir estas matilhas de animais assilvestrados
ou errantes em Portugal.
Queremos todos um país do séc. XXI em
bem-estar animal.
Mais uma vez, é absolutamente lamentável
que, sistematicamente, em Portugal sejam sempre necessárias graves tragédias,
perdas de vidas e com muita repercussão mediática, para expor deficiências há
muito identificadas e devidamente alertadas pelos técnicos e sabedores de cada
arte.
Desde 2016 que várias vozes individuais
e a própria Associação Dos Veterinários Dos Municípios pede que sejam sendo
tomadas medidas nacionais profundas de intervenção que terminem ou minimizem
totalmente o abandono de animais de estimação. Mostrou-se, ainda, o necessário
enorme investimento em programas de esterilização públicos, recorrentes e de
aplicação generalizada. Sem investimento sério e sem uma visão nacional do
abandono animal vamos continuar a permitir que estes se acumulem nas ruas, em
colónias, ou em matilhas, com perigo para outros animais, para as populações e
causando possíveis sérios problemas de saúde pública. Ou então, enquanto
Estado, teremos de ser coniventes com estes depósitos ilegais porque, na
realidade, não teremos alternativas oficiais.
Podemos mesmo afirmar que, atualmente,
vivemos um verdadeiro retrocesso em termos sanitários e de bem-estar animal sob
uma máscara de um ilusão pública de termos uma legislação de vanguarda, mas com
uma aplicação arcaica e retardada.
É imperativo que as autoridades competentes
atuem sempre. Mas para poderem atuar nas situações reais, como esta, necessitam
ter lugar, meios humanos e espaço físico para receber, tratar e nutrir as
centenas de animais deste “Abrigo”. Senão, será sempre mais fácil a todos os
agentes individuais da cadeia de ação do Estado ir permitindo ou olhar para o
lado. E, depois, no caso de uma desgraça destas acontecer, acabar por recusar a
ajuda da população civil, impedir a entrada de voluntários apaixonados pela
causa para escaparem, claro, a denuncias e a responsabilidades. É tudo, de
facto, criminoso.
As Câmaras Municipais, designadas pelo
poder central como entidades competentes para o controlo dos animais errantes,
têm vindo a adaptar muitas instalações dos seus CROs e empenham todos os meios
disponíveis, com vista ao incremento dessas estratégias, mas uma estratégia
nacional efetiva, não legislativa, é impreterível. É obrigação da nação, do
governo da nação atuar. A isso obrigam as vidas e as imagens, que já não saem
da memória, dos cadáveres de cães e gatos que morreram em aflição, durante o
incêndio, no “Abrigo” em Santo Tirso.
“Todas as coisas da criação são filhos
do Pai e irmãos do homem. Deus quer que ajudemos os animais, se necessitam de
ajuda. Toda criatura em desgraça tem o mesmo direito a ser protegida.” - S. Francisco de
Assis, padroeiro dos pobres, da natureza, dos animais e dos
médicos-veterinários.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL EM 21 DE julHO DE 2020, 00:07, EM: https://observador.pt/opiniao/porque-voltou-pedrogao-grande-em-formato-animal-num-abrigo-da-serra-da-agrela/?fbclid=IwAR0KNCZy9rD62VIj_UGefja1IRb2Watl0f1o3pDt3hZvxZhlhY9VAw22aIE
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